Escrevi este texto ontem, para uma entrevista de trabalho. Compartilho com vocês.O senhor Verbo e o senhor Advérbio começam seu dia de trabalho diário na “Academia das Letras Lusófonas”.
Verbo: Bom dia, Advérbio.
Advérbio: Bom dia, Verbo. Tudo bem?
Verbo: Tudo ótimo. E mais porque sem mim a comunicação não tem sentido.
Advérbio: De novo, Verbo? O que aconteceu contigo hoje, meu velho? Dormiu mal? Conversinha nada interessante para começar um dia tão bonito como hoje… Verbo, já falamos sobre isso várias vezes, nem mesmo os linguistas discutem tal assunto, eles já disseram que cada um de nós tem a sua função, seja gramatical, sintática ou semântica.
Verbo: É, mas sem mim, ninguém pode dizer o que é, o que tem, o que faz, o que fez, o que sentiu, o que vai fazer, formular hipóteses ou contar os seus sonhos. Sequer pode-se sonhar se não houver verbo para isso.
Advérbio: “Querido”, saiba que comigo não há dúvidas quando alguém lê uma frase, onde quer que eu esteja… se você disser “amanhã”, sempre será “o dia depois de hoje”. Agora, falando de você, quantas vezes eu vi pessoas lerem a palavra “andamos” sem saber se foi ontem ou hoje… oras… Inevitavelmente acabam recorrendo a mim.
Verbo: Ah, mas você sabe muito bem que “andamos” é presente e “andámos” é passado. Pretérito perfeito simples, para ser mais preciso.
Advérbio: Na variante europeia…
Verbo: E?
Advérbio: Como assim, “e”?! E… que é fácil saber quando usar um ou o outro porque, por exemplo, os portugueses mudam a forma de falar ao conjugar, nesse caso. Mas… e o resto dos mortais? Por exemplo, como é que fica a Cristina, que é brasileira e adora escrever?
Verbo: Você não sabe de nada, Advérbio… aliás, advérbio quis ser verbo mas ganhou esse “nominho” distorcido…
Advérbio: Eu não sei de nada? Eu sei “como”, “quando”, “onde”, “porque”, “quanto”, e um longo etc.
E falando de mim, eu existo para lhe dar um rumo, meu caro. A você, ao Adjetivo… a todas as classes variáveis. Para o seu governo, meu “nominho” vem do Latim, com maiúscula, que quer dizer ad + verbo, ou seja, palavra adicionada ao verbo. Para lhe ajudar, ó, grande ser independente… Eu posso ser invariável, mas não sou inflexível. Eu reflito e pondero, não como “alguns” que são conjugados, dizem que se adaptam a cada pessoa, mas no fundo só pensam em si.
Verbo: Muito bem, sou conjugado sim, para dar a cada pessoa aquilo que ela quer. Sou altruísta e benevolente. Quer presente, terá presente; quer que falemos no singular ou no plural, eu me adapto. Sou ótimo, minha classe é assim, variável, e você disse que entende de modo, eu não só entendo como tenho modo… aliás, tenho modos… indicativo, subjuntivo (conjuntivo para os portugueses) e até imperativo. E você? Que modos tem? Pelo visto, não os tem.
Advérbio: Eu tenho modo, no singular. Tenho um como, as pessoas entendem a vida porque explicam muitas de suas nuances comigo. O que seria do mundo sem que as coisas pudessem estar “bem”, “melhor”, “também”, “devagar” ou “mesmo assim”. Só estando “assim” já sabemos como estão. Assim. Simplesmente.
Verbo: Nossa, você pensou nisso tudo sozinho ou pediu a ajuda de alguém?
Advérbio: Acho melhor pararmos. Esta conversa não vai nos levar a nenhum lugar. E você vai continuar sendo esse narcisista de sempre.
Verbo: Você já está indo longe demais.
Advérbio: Bingo! Longe é um advérbio.
Continuação da luta de classes entre verbo e advérbio para explicar a transitividade verbal:
Advérbio: Eu trabalho em conjunto, meu querido. Mas você, pelo visto, vai com quem mais lhe interessar dependendo do momento. Quantas preposições estão aí ao pé da sua porta querendo trabalhar contigo, e você… as ignora… às vezes lhes diz que sim, às vezes lhes diz que não… que não há concordância. Usa as preposições como lenços descartáveis, e as pobrezinhas desejando ficar com você nas frases.
Verbo: Não sei do que você está falando, Advérbio. Seja mais claro.
Advérbio: Oras, você acha que eu não notei a tristeza da (preposição) “com” outro dia? Ele me contou que vocês estiveram juntos quando você precisou contar as lembranças de sua família. Tudo ia bem quando você disse que todos podiam “contar com” você, até o momento em que você, do nada, diz que “contava nos” dedos o dia para começar um novo projeto. Você nem percebeu que trocou de preposição como quem troca de roupa íntima? Que direito você tem de fazer isso com elas?
Verbo: hahahahahaha… (longa risada) Esta conversa é séria mesmo? Advérbio! Acorde! Tudo é questão de regência, meu caro.
Advérbio: Pronto, lá vem o sabichão querendo reger… você é maestro ou verbo? Tem alguma orquestra aqui?
Verbo: Haja paciência para falar com você, hein? Existe uma relação de dependência entre as palavras que se chama regência. No meu caso, como sou verbo, acontece a regência verbal.
Advérbio: Sempre querendo mandar…
Verbo: Continuo… então, dependendo do sentido que quero dar à frase, a regência acontece com uma ou outra preposição. Em outras palavras: não é sempre que posso chamar a mesma preposição para comunicar coisas diferentes. Quer um exemplo? Vou almoçar. Ok, entende-se perfeitamente. Mas se eu disser “vou almoçar com você”, mesmo sendo pouco provável, pois você é “de outra classe”, a frase tem sentido. Se eu tirar a preposição e disser “vou almoçar você”, o sentido muda, não é mesmo? Também é pouco provável, pois você é um sujeitinho intragável.
Advérbio: Ninguém nunca tinha me dito isso…
Verbo: O que, que você é intragável? Eu digo, sou honesto.
Advérbio: Não, ó, sábio regente. Nunca soube dessa história de mudança de preposição. Estou preocupado por questões mais profundas: quando, onde, como…
Verbo: A isso damos o nome de transitividade. Dependendo da regência, eu fico intransitivo, ou viro transitivo. Nesse último caso, posso ser transitivo direto ou indireto. Explico: se eu for transitivo direto, o que vem depois de mim é um objeto direto. Se for transitivo indireto, o objeto será indireto.
Advérbio: Mas, então, no caso da frase “vou almoçar com você” o que vem depois, é um objeto direto ou indireto?
Verbo: Nesse caso é indireto. Mas fica tranquilo, é só um objeto. Jamais vai ser uma indireta. Como você “não é variável mas é tão flexível” sempre traz a sua marmitinha e nunca vai almoçar com ninguém aqui da academia. Eu nem penso em chamá-lo para almoçar. Comigo.
Advérbio: Obrigado, ó, espertão da academia.
Verbo: De nada. Vamos trabalhar um pouco?
Advérbio: Quanto?
Verbo: Um pouco.
Advérbio: Olé!!! Advérbio. De quantidade, neste caso.
Lucia Dos Santos
Muito bom! Divertido e instrutivo. Parabéns!
Cristina Pacino
Obrigada! Que bom que gostou! Um abraço!