Na terça-feira estava conversando com uma amiga sobre este tema e do papo surgiu uma discussão tão cheia de fundamentos e argumentos que acabou virando post! Espero que lhe faça refletir também!
Há alguns anos a engenheira norte-americana Debbie Sterling teve uma ideia brilhante com um grupo de amigos: lançar um brinquedo para meninas de 4 a 9 anos que saísse do padrão “tudo tem que ser cor de rosa” e dos temas “princesa-bonecas-casinha-afazeres femininos domésticos” e que pudesse ajudar as crianças a desenvolverem seu lado engenhoso e criativo… brincando. Segundo ela, “brinquedos feitos para inspirar a nova geração de futuras engenheiras”.
A razão que a levou a fazê-lo é fácil de entender já que Debbie é engenheira formada por Stanford, uma das universidades mais prestigiadas do mundo, que fica no Vale do Silício. Ela conta na sua palestra no TEDxPSU que sempre atuou num ambiente tradicionalmente masculino, e nunca foi encorajada a ser engenheira, nem pela família, nem pelos amigos. Segundo ela, quando dizia o que queria estudar, sempre lhe respondiam que ela era muito criativa para isso, além do mais, é profissão de homens. Ela confirmou, disse que sempre foi muito difícil ter voz ativa no ambiente da engenharia pelo fato de ser mulher.
Depois de pensar muito e receber respostas negativas, Debbie fez um protótipo do seu brinquedo e ofereceu-o a um fabricante. Protótipo lançado, ela fez um vídeo pedindo q as pessoas o adquirissem para poder fabricar 5 mil unidades. Em 4 dias havia atingido o objetivo proposto para 30, o que levou a engenheira ao sucesso imediato. Meta alcançada.
Lançamento feito, sua empresa produziu outro vídeo, que se tornou um viral, onde mostra meninas cantando We Are the Champions, do Queen, mudando a letra, reivindicando um mundo mais aberto às mulheres.
A essa altura o produto já era um sucesso entre as mães e pais dos Estados Unidos e de vários outros países, 80 em total.
Na semana passada, 19 de novembro, a empresa lançou um novo vídeo – que já é um viral com mais de 8 milhões de visitas – usando a música Girls do Beastie Boys, no mesmo formato da anterior, ou seja, mudança de letra. Importante ressaltar que essa música é uma paródia e leva o protesto em si, porque utiliza estereótipos femininos de mentalidades machistas que os integrantes do grupo repulsam com toda convicção. Quem conhece o grupo sabe que sempre foi seu estilo de protestar.
Uma releitura da música não seria problema, se não fosse a vontade expressa do grupo de que seu trabalho nunca fosse usado para fazer propaganda. Quando assistir o vídeo, verá que a mensagem não identifica nenhum produto com a música, exceto no final onde aparece a marca. Porém, não se pode negar que a música do anúncio é uma cópia da original com a letra alterada.
Entretanto, o grupo se manifestou sobre o assunto. Não foram consultados com anterioridade, o que legalmente não permite o uso da música. Por isso, dois dias depois do vídeo ser subido no youtube, publicaram uma carta aberta à empresa de Debbie onde dizem
“Como muitos dos milhões de pessoas que viram o seu comercial do brinquedo “GoldieBlox, Rube Goldberg e os Beastie Boys,” ficamos muito impressionados com a criatividade e a mensagem por trás de seu anúncio. Nós firmemente apoiamos a capacitaçao de jovens garotas, quebrando os estereótipos de gênero e acendendo uma paixão pela tecnologia e engenharia.
Por ser tão criativo, não há erro, o vídeo é uma propaganda feita para vender um produto, e, há muito tempo, fizemos uma decisão consciente de não permitir que a nossa música e/ou nome fosse usado em anúncios de produtos. Quando tentamos simplesmente perguntar como e por que a nossa música “Girls” foi usada em seu anúncio sem a nossa permissão, VOCÊ nos processou.”
A resposta da empresa de Debbie foi bastante direta, defendendo-se ao dizer que a letra da música é sexista, e o seu dever é acabar com estereótipos de gênero, além de incentivar jovens meninas a se envolverem em atividades de desafio intelectual, em particular em ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Acusa os Beastie Boys de ameaçá-los, pois os integrantes disseram que esse tipo de uso é uma violação de direitos autorais, não é um uso legítimo, uso de propriedade intelectual não autorizada, o que é um grande problema e tem um impacto significativo.
As linhas acima têm várias leituras, e esse processo acaba de começar.
Assumindo o papel de advogado do diabo, deixo alguns questionamentos:
– O objetivo da Debbie é incentivar a criatividade. Quanto da sua criatividade você usa no seu dia a dia?
– Nós, como chefes, incentivamos nossos funcionários a usar a criatividade no trabalho? E nosso filhos, sobrinhos?
– Ainda existe sexismo nas áreas de ciências e exatas? Os homens são os que mandam?
– A criação de um produto para meninas não gera discriminação positiva?
– Até que ponto é um produto que pensa na engenhosidade das crianças e está desenhado para auxiliar no seu desenvolvimento cognitivo e como ser humano?
– Por que razão a proprietária não usou due diligence (pesquisou/pediu autorização) antes de utilizar a música?
– Uma start-up poderia perder visibilidade e ter sua imagem destruída por causa de direitos autorais? Que papel joga a opinião pública nesse caso?
– Comentando o assunto e espalhando a informação estamos dando mais visibilidade ao produto? Se sim, isso é positivo?
ATUALIZAÇÃO: a empresa postou uma carta aberta desculpando-se à banda, e retirou o vídeo do ar. Até o momento podemos vê-lo em Youtube.
Glossário:
Papo: conversa. Dependendo do contexto pode significar mentira.
Virar: transformar-se, alterar, modificar.
Prestigiado: bem conceituado, que tem boa reputação.
Processar: iniciar ação judicial cível ou criminal contra algo/alguém.
Sexismo: teoria que defende a superioridade de um sexo sobre o outro. Discriminação baseada em critérios sexuais.
Direito autoral: conjunto de prerrogativas conferidas por lei à pessoa física ou jurídica criadora da obra intelectual, para que ela possa gozar dos benefícios morais e patrimoniais resultantes da exploração de suas criações.
Uso legítimo: O fair use (uso honesto ou justo, na tradução literal para o português, melhor entendido como uso legítimo, uso razoável, uso aceitável) é um conceito da legislação dos Estados Unidos que permite o uso de material protegido por direitos autorais sob certas circunstâncias, como o uso educacional (incluindo múltiplas cópias para uso em sala de aula), para crítica, comentário, divulgação de notícia e pesquisa. Outros países têm leis semelhantes, porém sua existência e aplicabilidade variam de país para país.
Propriedade intelectual: Segundo definição da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), a propriedade intelectual refere-se às criações da mente: invenções, obras literárias e artísticas, e símbolos, nomes, imagens, desenhos e modelos utilizados no comércio.
Abrange duas grandes áreas: Propriedade Industrial (patentes, marcas, desenho industrial, indicações geográficas e proteção de cultivares) e Direito Autoral (obras literárias e artísticas, programas de computador, domínios na Internet e cultura imaterial).
Pela propriedade intelectual, os criadores ou responsáveis por qualquer produção do intelecto (seja nos domínios industrial, científico, literário e/ou artístico) terão garantido por um determinado período de tempo, a possibilidade de recompensa pela própria criação.
Advogado do diabo: Termo que designa uma pessoa que discute a favor de um ponto de vista no qual não acredita, mas que o faz simplesmente para apresentar um argumento. Este processo pode vir a ser utilizado para testar a qualidade do argumento e identificar erros na sua estrutura. Também designa aquele que defende pontos de vista que aparentemente são indefensáveis.
Discriminação positiva: tipo de discriminação que tem como finalidade selecionar pessoas que estejam em situação de desvantagemm tratando-as desigualmente e favorecendo-as com alguma medida que as tornem menos desiguais. É um processo que tem como objetivo tornar a sociedade mais igualitária diminuindo os desequilíbrios que existem em certos grupos sociais. A Cota Racial é um exemplo de discriminação positiva.
Due diligence: termo em inglês usado para uma série de conceitos, se refere à utilização de uma investigação ou pesquisa de empresa, setor ou pessoa antes de assinar um contrato ou um ato, com um certo padrão de cuidado. É uma avaliação prévia de diversos aspectos de um produto antes de lançá-lo.
Start-up: negócio ou empresa nova que está sendo estabelecida.
Espalhar: difundir, expandir, propagar, alastrar.
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